



FERNANDO BURJATO
Fernando Burjato recolheu das televisões da infância as faixas coloridas que ocupavam a tela quando nao havia programação nos canais abertos. Em sua formação, nos anos 1990, viveu os resquícios da exaltação da pintura da década anterior (particularmente relativa aos professores pintores). Quando começa a expor, ainda nesses anos, e um momento de revisão da arte abstrata modernista: ao mesmo tempo que se relia Clement Greenberg, havia um profundo cansaço dessa visão de autonomia dos meios.
EXPOSIÇÃO INDIVIDUAL
O discurso havia ficado velho (os estadunidenses Robert Rauschenberg, Frank Stella, Sam Gillian, Lynda Benglis, entre outros e outras fizeram essa crítica entre 1950 e 1960), mas a prática da pintura – tantas vezes declarada morta ou em crise – receberia outros sentidos. “Múltiplas possibilidades semânticas” se apresentavam, como escreve o historiador da arte Craig Staff em After modernist painting. A experiência dessa abstração contemporânea, permeada pelas referências modernistas, mas consciente dos aprendizados que as neovanguardas haviam trazido, retirava a representação da linguagem pictórica (que seria restabelecida nos anos 2000, localmente, embora tenha habitado a pintura neoexpressionista da virada dos anos 1970 para 1980 de maneira pouco literal ou mesmo reconhecível, em alguns casos). Como solução poética para Burjato, as faixas ofereciam possibilidades de se refletir sobre a história da pintura dita ocidental ao mesmo tempo que investigar os rumos atuais dessa prática, em sintonia com as atualizações trazidas pelos estudos da imagem. A pintura já não era apenas algo em si mesma, como acreditava Clement Greenberg, tampouco existia apenas na rua como o graffiti; seria mais um híbrido que incluía ainda a transformação do olhar e da própria percepção de mundo provinda da cultura digital. Nessa direção, em trabalhos recentes, os degradês aparecem com frequência em diálogo com a estética digital em seus efeitos cromáticos produzidos por meio de ferramentas de softwares para tratamento de imagens. Embora pareça uma técnica atual quando exibida pelas telas dos equipamentos eletrônicos, a passagem de tons ou cores desse modo sutil está nas pinturas suprematistas e nas volumetrias legerianas. Para além da sua visualidade, essas pinturas são objetos pesados, como se fossem fragmentos de estruturas arrancados grosseiramente da arquitetura – as rebarbas são carregadas junto; talvez essas faixas sejam coladas sobre telas para que tenham como ser penduradas na parede e nelas escorra a tinta a óleo, da camada mais superficial, até que seque. Burjato investiga assim visualidades que nos envolvem. As combinações de cores e o tratamento destas se modificam conforme a percepção da vida e os sentidos da História tomam rumos diversos, sempre a partir da experiência urbana. No decorrer de sua trajetória, as pinturas deixam de ser regularmente e repetidamente retangulares, como aquelas que serviram ao começo da série, e ganham sinuosidades repetidas ou recortes, alguns deles lembrando o contorno das nuvens de desenhos animados e ilustrações de livros infantis. Por vezes, as pinturas é que parecem ter sido recortadas assimetricamente de outras maiores. Às vezes, simulam o verso das telas revelando um chassi (lembrando a tradição da pintura quando chamava essa técnica de trompe l’oeil porque buscava fingir ser aquilo que não era). Há um jogo divertido na disposição das cores e dos procedimentos – a tela pode ser dividida na metade, em dois terços ou fatiada igualitariamente em diversas faixas semelhantes, cores se alternam com degradês e efeitos metalizados. Esse aspecto brincante pode ser observado ainda nos guaches com formas mais orgânicas que são realizados sobre papel – e entendidos pelo artista como desenhos. Tais formas estão na arte abstrata europeia do início do século XX, com Matisse, Miró, Kandinsky e Hilma af Klint, em meados do mesmo século com tantas e tantos outros artistas – de Helen Frankenthaler e Arshile Gorky às de Willi Baumeister, podendo ainda ser conferidas nas esculturas de Barbara Hepworth e nos jardins de Burle Marx. Nos dias atuais, o conforto que essas formas biomórficas trazem foi apropriado pelo design e está largamente difundido no mobiliário e pelo comercio de pôsteres de reprodução, cujas autoras e autores são frequentemente contratados – e pagos – on demand, alimentando as vastas prateleiras de megalojas de construção e decoração. Os guaches de Burjato fazem uma discussão da pintura a partir de fenômenos visuais – e de consumo – contemporâneos. O artista opera nesse encontro entre contextos e sentidos da pintura biomórfica, da mesma maneira que quando encontra as faixas – cujas cores são distribuídas intuitivamente a partir da experiência cromática que o artista possui em 30 anos de prática, entendendo aqui a intuição como “processo básico de toda compreensão, sendo exatamente tão operacional no pensamento discursivo quanto na clara percepção sensorial e no juízo imediato”, nas palavras da filósofa estadunidense Susanne Langer. A mesma operação aparece nas pinturas ou, melhor, nos pasteis que brincam com máximas conceituais de René Magritte e Joseph Kosuth – esta não é uma pintura (um cachimbo) embora seja; uma pintura, a ideia de uma pintura e a imagem de uma pintura estão juntas (ou de uma cadeira). A surpresa está em saber que, na maioria das vezes, não há uma pintura correlata àquela que parece ter sido reproduzida em pastel. São nomeadas pela datação – dia/mês/ano – o que reforça o vínculo com o pensamento da arte conceitual, ao mesmo tempo que com a pintura autorreferente dita modernista. Em termos mais próximos, o Neoconcretismo percebeu que havia um cromatismo sintomático da cultura brasileira e o pinçou no carnaval, na construção civil autônoma, pois necessária para a moradia em locais onde o poder público só atua com violência, na praia. Burjato a coleta nos portões das lojas em moradias adaptadas, frequentemente recobertas por azulejos. Paredes, portas, janelas, muros, fachadas, portões, ruas, placas, postes (mesmo cemitérios) que recebem cor. Engana-se o estrangeiro que pensa que esse cromatismo é evidência de uma vida exultante. Está mais próximo de uma euforia, que tem seu equivalente contrário na desolação. Burjato nota como a cultura arquitetônica que nos cerca, tanto urbana como rural, pode ser tudo, menos monótona em termos de cor (embora grande parte das atuais incorporadoras responsáveis por edifícios residenciais busquem construir um gosto médio baseado em enfadonhas variações de bege sob o pretexto de diminuírem a manutenção). Nesta exposição, há um pouco de cada rumo da investigação pictórica de Burjato porque essas ramificações são partes constitutivas de seu trabalho atual. Toda pintura contemporânea é tradição bem como experiência vigente (tanto aquela vivida coletiva como individualmente), dada a longa duração dessa prática. Cada artista relaciona-se com esse fato a seu modo. O modo Burjato de operar é pela redução e ampliação, alternadamente, das possibilidades lexicais e semânticas da pintura, orientando-se pelas contingências decorrentes tanto do processo de pintar como do fato de se existir em determinadas conjunturas. Disso resultam pinturas para fora, que podem estar nos lugares de arte – como esta galeria –, mas que existem em espaços de qualquer outra natureza; espaços de convívio. Converse com all stars.